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Futuro Perigoso
MВЄ Del Mar AgullГі
Os avanГ§os mГ©dicos conseguiram curar toda a população mundial, transformando as doenГ§as em meras lembranГ§as. Devido a essas curas, o sistema imunolГіgico das pessoas foi afetado, ficando exposto a novos vГrus mortais. Bem-vindos Г era dos vГrus e dos hologramas. No futuro, vГЎrios sГ©culos depois da Г©poca atual, os avanГ§os mГ©dicos permitirГЈo que a população nГЈo adoeГ§a. Esses avanГ§os debilitarГЈo nosso sistema imunolГіgico, deixando-o exposto a uma variedade de novos vГrus mortais. Carolina e Keysi, duas jovens virologistas sem muita coisa em comum, serГЈo as encarregadas de lutar contra os novos vГrus, encontrando antГgenos que os faГ§am desaparecer, e terГЈo que descobrir a si mesmas, enquanto lidam com sua complicada vida privada. As duas colegas farГЈo uma amizade que as farГЎ crescer como pessoas. Tudo vai se complicar quando a cura de vГЎrios desses vГrus se tornar uma tarefa impossГvel, e o planeta passar a enfrentar uma situação crГtica. Por outro lado, MГіnica, uma mulher jovem, viГєva, com dois filhos e sem trabalho, terГЎ que lutar para sobreviver em uma sociedade ultramoderna, em que a tecnologia invadiu tudo, e em que os empregos estГЈo mais escassos. Sua vida mudarГЎ drasticamente ao se apaixonar pelo homem errado. Atreva-se a entrar na era hologrГЎfica, um mundo futurista, cheio de tecnologia, e em que a humanidade terГЎ que enfrentar vГЎrios desafios, inclusive uma possГvel extinção. ConseguirГЈo as duas jovens virologistas encontrar um antГgeno que salve o mundo? ConseguirГЎ MГіnica prosperar com sua famГlia?
MВЄ del Mar AgullГі
Futuro Perigoso
FUTURO PERIGOSO
MВЄ del Mar AgullГі
TГtulo: Futuro perigoso
В© MВЄ del Mar AgullГі, 2020
Tradutor: Lucas Rodrigues Oliveira (https://www.traduzionelibri.it/profilo_pubblico.asp?GUID=5ea513d10f3d32ad30288e60ec14d2fd&caller=pubblicazioni)
Ilustração da capa: mores345
Design da capa: В© MВЄ del Mar AgullГі
Primeira edição
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Para Xena
1.В A ordem a partir do caos
Carolina trabalhava em um laboratГіrio. Ela era uma jovem de vinte e cinco anos de Maiorca e que estava escrevendo uma tese de biologia. Ela estudava vГrus que afetavam os humanos de forma mortal. Procurava possГveis antГgenos e, quando entendia que estavam prontos, testava-os em "cobaias humanas".
As cobaias humanas eram pessoas que se dedicavam a usar seu corpo para fins de estudo clГnico. Primeiro, era injetado o vГrus, e, depois, o antГgeno. Eram submetidas a uma grande variedade de testes antes, durante e depois do processo. Qualquer um poderia ser uma cobaia humana (CoHu); a Гєnica condição era ser maior de idade e nГЈo ter nenhuma doenГ§a mental que afetasse a capacidade de decisГЈo. Os laboratГіrios pagavam muito bem. Apesar de, no inГcio, a sociedade ser contrГЎria Г ideia, com o tempo as cobaias se tornaram populares. Atualmente, havia filas de espera.
Havia duzentos anos que as cobaias humanas existiam de forma legal, quando o governo da FinlГўndia legalizou esses experimentos com humanos. Logo chegaram outros paГses, atГ© que a maioria aderiu. Antes de ser legalizada, essa prГЎtica era ilegal e punida com prisГЈo para os funcionГЎrios dos laboratГіrios.
Muita gente morria nos testes. Alguns porque os antГgenos nГЈo funcionavam, outros por causa de infecções. Em caso de morte, a famГlia recebia uma grande quantia em dinheiro por vГЎrios anos, de acordo com o contrato que havia sido assinado. Havia pessoas que nГЈo morriam, mas acabavam com sequelas, como paralisia facial, perda de visГЈo, ganho repentino de peso, entre outras, muitas delas com cura, outras nГЈo. Havia tambГ©m pessoas que passavam por alterações em parte de sua aparГЄncia fГsica; algumas ficavam com manchas por todo o corpo, outras sofriam modificações na cor do cabelo ou dos olhos, na altura, etc.
Atualmente, os vГrus mortais haviam se multiplicado de forma exponencial, tornando indispensГЎvel o trabalho de Carolina e seus colegas.
***
Keysi era a tГpica britГўnica, com olhos azul-claros e cabelos loiros. Ela morava na Espanha havia trГЄs anos, quando conheceu em Londres seu atual namorado, um jovem estudante espanhol da mesma idade, intercambista do Programa Erasmus. Keysi havia trabalhado em laboratГіrios na Inglaterra, na Alemanha e, agora, na Espanha. Seus pais eram alemГЈes, e seus avГіs eram ingleses, entГЈo ela nГЈo tinha problemas com os idiomas.
Fazia dois anos que Keysi era colega de laboratГіrio de Carolina. As duas tinham a mesma idade e mantinham uma relação cordial. Keysi gostava de trabalhar em silГЄncio, sem ninguГ©m para incomodГЎ-la; na melhor das hipГіteses, ela tolerava mГєsica clГЎssica. Entretanto, Carolina falava sem parar, o que no inГcio incomodava a britГўnica. ApГіs os primeiros dias trabalhando juntas, Keysi disse a Carolina que nГЈo conseguia se concentrar se ela nГЈo parasse de falar sobre sua vida. A partir daquele dia, o relacionamento delas se baseava nos bons dias e noites de dedicação diГЎria.
O trabalho de Keysi no laboratГіrio era o mesmo de sua colega: procurar antГgenos. Diferente de Carolina, ela sentia a necessidade de encontrar mais de um antГgeno; nГЈo suportava a ideia de que houvesse pessoas que morressem por causa de um erro seu. Em seus testes, jГЎ tinha perdido duas cobaias humanas; com Carolina, morreram trГЄs cobaias.
– Bom dia, senhoritas – disse um homem de quase dois metros de altura e cabelos volumosos, entrando pela porta da Sala 4, onde as duas virologistas trabalhavam diariamente.
– Bom dia, senhor Norberto – respondeu Keysi.
– Trouxe cinco novos vГrus. Tenham muito cuidado ao manipular, os rapazes da seção de coleta de vГrus tiveram dificuldade para encontrar eles. O primeiro – Norberto levantou uma pequena garrafa contendo uma substГўncia esverdeada. – Г© um vГrus que coletamos na ГЌndia; estima-se que tenha afetado trezentas mil pessoas, das quais sessenta mil morreram. Tem prioridade dois e, nas prГіximas semanas, pode se tornar um, se ele se atingir outros paГses. Perguntas? – Norberto olhou para Keysi e Carolina, que se entreolharam. – Esse outro – Norberto ergueu um frasco em forma de esfera que continha uma substГўncia que parecia areia vermelha. – Г© um vГrus que encontramos na fronteira entre a China e a MongГіlia; lГЎ, eles apelidaram de areia que voa, devido Г s tempestades que aconteceram nos Гєltimos meses, que faziam com que esse vГrus – Norberto apontou para o frasco. – saГsse voando por causa do vento. O nГєmero de pessoas afetadas Г© desconhecido, tem prioridade cinco e Г© muito perigoso em contato com a ГЎgua. Esse outro – Norberto pegou uma garrafa contendo uma substГўncia azul parecida com massa de modelar. – Г© um grande mistГ©rio. Foi encontrada pela senhorita GonzГЎlez – a senhorita GonzГЎlez era filha de Norberto e a melhor no departamento de coleta de vГrus. – na costa da AustrГЎlia durante suas fГ©rias. Ele comeГ§ou matando uma grande quantidade de animais marinhos que apareceram na costa. Mais tarde, o vГrus passou para as pessoas.
– Como passou dos animais para as pessoas? – perguntou Keysi.
– Por contato direto. A primeira pessoa afetada, o paciente zero, foi uma das pessoas que transportaram os corpos sem vida dos animais.
– Como sabemos que foi o paciente zero? As outras pessoas que retiraram os animais das praias não se contagiaram? – perguntou Carolina.
– NГЈo, nГЈo se contagiaram. Todas as outras pessoas foram testadas, e todas estavam e continuam saudГЎveis. As prГіximas pessoas afetadas pelo vГrus foram duas mulheres que atenderam nosso paciente zero no hospital.
– O que aconteceu com o paciente zero? – perguntou Keysi.
– Ele morreu três dias depois de ter sido infectado, assim como as duas mulheres e outras vinte pessoas.
– Quando tudo isso aconteceu? Por que não falaram nada na televisão? – perguntou Carolina.
– Carolina, todos os dias descobrimos novos vГrus mortais. NГЈo dГЎ pra divulgar todos, ou o caos reinaria em cada lugar em que aparecesse um novo vГrus. Imagine o que aconteceria na AustrГЎlia se dissessem que existe um vГrus que pode matar em trГЄs dias e que nГЈo tem cura. Ou na ГЌndia, que Г© um foco de surgimento de vГrus, onde sessenta mil pessoas morreram sГі com esse vГrus aqui. Nosso trabalho Г© vencer a guerra contra esse mal, que hoje Г© a principal causa de morte no mundo. Quando descobriram a cura do cГўncer, do mal de Alzheimer e de todas as doenГ§as que agora sГЈo histГіria, nosso corpo ficou mais forte, mas tambГ©m mais fraco, e Г© dessa fraqueza que esses vГrus se aproveitam. – Norberto foi atГ© a janela e olhou, sentindo saudade; seu bisavГґ ficou famoso por descobrir uma vacina contra qualquer tipo de cГўncer, motivo pelo qual ele decidiu se tornar biГіlogo. Por vГЎrias dГ©cadas, as pessoas nГЈo morreram de doenГ§as, mas um dia, uma mulher, em sua casa em Paris, comeГ§ou a ficar doente. Depois de trГЄs horas, ela morreu por causa de um vГrus. Desde entГЈo, os vГrus se multiplicaram, e novos laboratГіrios eram abertos todos os dias para estudГЎ-los em busca de uma cura. – A prioridade desse vГrus Г© trГЄs. Se aumentar o nГєmero de vГtimas, vai subir pra dois. – Norberto apontou para um pequeno frasco oval contendo uma substГўncia de um tom amarelo esverdeado. – Esse aqui Г© um vГrus encontrado aqui na Espanha, especificamente na provГncia de SГіria. Foi detectado ontem Г noite; logo depois, uma de nossas equipes foi pra lГЎ imediatamente pra coletar amostras. Afetou duas pessoas, um casal de idosos. A mulher morreu algumas horas depois do contГЎgio, que foi entre duas e seis horas antes; o marido ainda tГЎ vivo. A prioridade desse vГrus Г© nГvel nove. E, por Гєltimo, temos esse outro vГrus – Norberto pegou uma garrafa cilГndrica contendo um lГquido azul-claro. —, que vem de uma montanha fria da Noruega. Foi descoberto por acaso. Um alpinista tava passeando nas montanhas quando comeГ§ou a se sentir mal e a sangrar pela boca. Ele correu o mГЎximo que pГґde atГ© um abrigo de montanhistas, onde, jГЎ inconsciente, foi levado pra um hospital. O alpinista chegou ao hospital em parada cardГaca. Por sorte, conseguiram fazer a reanimação, e ele ainda tГЎ vivo. Todos os alpinistas do abrigo comeГ§aram a sofrer os mesmos sintomas minutos depois, assim como aqueles que tavam no hospital naquele momento. Algumas horas depois, o hospital tava em quarentena, e continua atГ© agora.
– Meu Deus, quantos infectados temos agora? – perguntou Keysi, que estava boquiaberta.
– Umas quinhentas pessoas até essa manhã, pode ser que agora já tenha alcançado mil. É muito contagioso, e o pior é que não sabemos a forma como se espalha.
– Quando tudo isso aconteceu? – perguntou Carolina.
– Ontem à tarde. Sairá no jornal do meio-dia. Tem prioridade dois. Meninas, ao trabalho.
– Espere, por que temos uma amostra desse vГrus tГЈo rГЎpido? – perguntou Carolina.
– Nos enviaram de um laboratório da Noruega. Segundo eles, somos os melhores.
O laboratГіrio de Norberto, O Farol da Luz, tinha prestГgio internacional. Para trabalhar lГЎ, primeiro era necessГЎrio passar por uma sГ©rie de exames teГіricos e prГЎticos muito exigentes.
A pesquisa de antГgenos tinha um grau de prioridade de um a nove, sendo um o maior grau. No inГcio, o nГvel da prioridade foi delimitado pelo nГєmero de mortes, que depois foi alterado para o nГєmero de infectados, atГ© que, no final, cada laboratГіrio passou a escolher a prioridade de acordo com seu prГіprio sistema. O laboratГіrio de Norberto escolhia a prioridade de encontrar um antГgeno com base em cГЎlculos que projetassem o nГєmero de infectados e mortos nos prГіximos dias.
Keysi fazia anotações de tudo o que Norberto tinha dito em uma agenda, e logo compartilhava com Carolina. A inglesa tinha uma memória eidética, por isso não precisava fazer anotações enquanto Norberto falava.
Aquele dia seria duro. Eles tinham trazido cinco vГrus; poderia demorar horas, dias, semanas ou meses para descobrir os antГgenos. Cada segundo era importante. A vida ou a morte de vГЎrias pessoas dependia de gente como elas.
Keysi entГЈo voltou ao vГrus com o qual estava trabalhando antes de Norberto aparecer; era de prioridade dois, e ela estava prestes a encontrar o antГgeno.
– Acho que consegui – disse Keysi.
– O quê? – perguntou Carolina, que estava imersa em seus pensamentos.
– O antГgeno para o vГrus de CancГєn. Vou mandar para Norberto testar, jГЎ temos trabalho suficiente.
– VocГЄ nГЈo vai procurar outros possГveis antГgenos? – Keysi estava sempre procurando por vГЎrios antГgenos.
– Carolina, eu tô nervosa, muita gente tá morrendo, temos que nos apressar.
– Keysi, se acalme, desse jeito você não vai ajudar. Se quiser, pode tirar o dia de folga.
– Tirar o dia de folga? Com esse caos? – perguntou a inglesa, perdendo a paciência.
– Nesse caso, vá pra cafeteria, tome um café, relaxe. Se quiser, ligue pro seu namorado – Keysi fez uma careta. – e depois, quando tiver melhor, volte.
– Tá bom, vou ligar pra Clara – Clara era a secretária de Norberto, que atuava como garota de recados.
A secretГЎria de Norberto entrou na sala depois de alguns minutos.
– Clara, leve esse antГgeno pra Norberto, diga a ele que tГЎ pronto pros testes, e que esse Г© o de CancГєn.
– Clara, diga também a Norberto que eu gostaria de ter uma cópia dos relatórios do hospital do alpinista norueguês e o do caso zero da Austrália – disse Carolina.
Keysi seguiu o conselho de Carolina e foi tomar alguma coisa na sala que era usada para relaxar, mas ela nГЈo ligaria para o namorado, com quem tinha discutido, talvez pela Гєltima vez.
Keysi voltou para o local onde trabalhava, a Sala 4. Carolina jГЎ tinha comeГ§ado a trabalhar com o vГrus da ГЌndia.
A britânica ficou ali, com a porta aberta, olhando para sua colega. Carolina se virou e olhou para ela, sem entender nada. Naquele momento, a britânica começou a chorar, então Carolina foi até ela e a abraçou.
– O que aconteceu, Keysi?
– Meu namorado me largou.
Carolina tinha visto o namorado de sua colega poucas vezes, em festas de Natal e em algum outro evento no laboratГіrio. Ele parecia um rapaz muito atraente, mas um pouco antipГЎtico.
– Talvez ele não fosse o melhor cara para você.
– Carolina, eu sei que ele não era, mas isso não facilita as coisas. Eu deixei toda a minha vida na Inglaterra por ele, aprendi espanhol e vim morar em Maiorca com ele.
– Não tem mais volta?
– Não tem mais volta? – repetiu Keysi. – Eu não quero que tenha volta.
– Eu pensei que vocês tavam indo bem.
– A gente tava, até que no ano passado eu fiquei grávida.
– Eu não sabia disso – Carolina estava surpresa.
– Nem eu, até que era muito tarde. Uma noite, meu namorado levantou à meia-noite pra pegar um copo d'água. A cama tava cheia de sangue; aparentemente eu tava sangrando porque algo não tava funcionando dentro de mim. Eu tava tendo um aborto e nem sabia que tava grávida. Tava de dois meses. Tudo aconteceu muito rápido. Nos dias seguintes, eu tava triste, mas tudo continuava do mesmo jeito. – Keysi fez uma pausa. – A gente devia continuar.
– Claro – respondeu Carolina.
Essa tinha sido a conversa mais Гntima que as duas colegas haviam tido, e tambГ©m a mais longa. As duas continuaram trabalhando. Keysi adorava Richard Wagner, entГЈo Carolina foi ao computador e colocou uma playlist de Wagner, sem dizer nada.
Elas decidiram que cada uma criaria um antГgeno para todos os cinco vГrus, compartilhando informações para acelerar o processo.
2.В Sou uma sobrevivente
Eram dez da manhã. Mónica tinha deixado seu filho pequeno, Samuel, na escola. Naquele dia, chegou mais tarde porque tinha um check-up marcado com o médico. Samuel nasceu como qualquer outra criança, mas algo mudou com dois meses de vida. Samuel estava ficando cego, e o avô de Mónica também era cego. Graças ao progresso da medicina, uma operação simples foi suficiente para parar a cegueira e recuperar a visão perdida. Samuel tinha que ir ao médico a cada seis meses para verificar se a visão estava perfeita.
MГіnica estava caminhando para sua casa, pensativa. Ele estava desempregado, mas recebia uma pensГЈo como viГєva. Ele tinha que pagar o aluguel da casa em que morava com seus dois filhos, Samuel e Г“scar, as contas do mГЄs, o uniforme das aulas de karatГЄ de Samuel e todas as despesas em geral. Seu marido tinha morrido de parada cardГaca quando detectaram a cegueira precoce de Samuel; infelizmente, nГЈo havia cura para tudo.
O seu marido era o pai de Samuel. O pai de Г“scar era um antigo namorado da escola que ela nГЈo suportava. Pedir ajuda financeira era a Гєltima coisa que pensava em fazer.
Para Samuel, que tinha quatro anos, seu irmГЈo mais velho era como um pai, mesmo que ainda faltassem vГЎrios dias para que ele atingisse a maioridade.
Antes de voltar para casa, ela encontrou uma de suas vizinhas, que tinha comprado um carro novo muito caro, que sempre havia sido a obsessГЈo de seu marido.
– Oi, vizinha.
– Oi, Maribel.
– Você parece triste. Tudo bem na consulta de Samuel?
– Tudo bem, brigada.
– Você viu o carro que eu comprei? – disse, esboçando um grande sorriso. – Não pense que eu ganhei na loteria ou alguma coisa assim, conseguimos isso trabalhando.
Os vizinhos de Mónica tinham um açougue que não estava passando por seus melhores momentos. Mónica duvidava que a pequena empresa pudesse render tanto.
– Também não pense que roubamos um banco. Como disse, conseguimos trabalhando. Hoje à tarde, se você quiser, podemos dar uma volta com você e as crianças.
Depois de dizer isso, ela piscou, entrou em seu carro possante e saiu.
Outra vizinha saiu de casa para forçar um encontro com Mónica.
– Você viu o carro de Maribel?
– Sim, RocГo, eu vi – MГіnica estava cansada e queria entrar em casa.
– Mas você sabe como eles conseguiram? Já ficou sabendo?
– Ela me disse que trabalhando.
– Trabalhando? Eu nГЈo chamaria assim. Ela foi a um desses lugares onde eles te injetam um vГrus e depois injetam o antivГrus. Se vocГЄ se curar, fica rico, se nГЈo, bem…
– Você quer dizer que eles trabalharam como CoHu?
– Mas isso não é trabalhar, é sorte. E pensar no dinheiro que pagaram pra eles…
–RocГo, Г© trabalho, e alГ©m disso Г© muito perigoso, e tambГ©m Г© necessГЎrio. Tem que ser muito corajoso para deixar que injetem um vГrus mortal sem saber se vocГЄ vai sobreviver.
Depois de dizer isso, ela entrou em casa, deixando a vizinha falando sozinha.
Suas duas vizinhas, Maribel e RocГo, eram muito parecidas. Eles competiam em tudo, queriam ser as primeiras a saber de tudo. Todos os vizinhos fugiam delas assim que as viam se aproximar. Para MГіnica, suas duas vizinhas fofoqueiras eram cansativas.
Assim que a porta se fechou, a campainha tocou. MГіnica abriu a porta, saindo para a pequena varanda da casa. Um homem baixinho, com pouco cabelo e Гіculos esperava na porta.
– Oi, Mónica – o homem cumprimentou.
– Oi, Ignacio.
– Tudo bem com Samuel?
– Sim, tudo perfeito – respondeu Mónica, que pensava que seus vizinhos não a deixariam em paz nem por um momento.
– Fico feliz. – o homem tirou os óculos e os limpou. – Vi você entrar e aproveitei pra vir perguntar se você já tem o dinheiro do aluguel.
– Ignacio…
– Você me deve dois meses, sem contar com o atual. Sou bom com você porque você tem dois filhos pra cuidar sozinha, mas eu também tenho que comer.
Mónica olhou automaticamente para a barriga proeminente de Ignacio, e, sem saber por que, começou a rir. Ignacio olhou para ela irritado.
– Desculpe, mas acho que a minha pensão de viúva não dá pra tanto.
– Então você vai ter que procurar outro lugar…
Mónica bateu a porta sem deixar Ignacio terminar de falar. Mónica sabia que as ameaças de Ignacio nunca eram cumpridas; no ano anterior, ela chegou a dever seis meses, e ele não a despejou. Mónica era uma mulher de trinta e quatro anos bastante atraente, aos olhos de Ignacio inclusive. Ele vinha flertando com Mónica desde que ela tinha se mudado, alguns anos atrás, após a morte de seu marido.
Ignacio era seu vizinho, mas tambГ©m era o dono de todo o bloco de casas. Ele comprou depois que ganhou na loteria, quando as casas estavam 90% construГdas. Ele morava em uma delas e alugava as outras. VГЎrios vizinhos tentavam comprГЎ-las, mas ele recusava, alegando que assim ganhava mais dinheiro.
Ignacio morava sozinho. Todos os vizinhos pagavam um dia, exceto Mónica, por isso que ela, quando ouviu que ele também precisava comer, começou a rir. Ela sabia que ele não precisava de dinheiro, ao contrário dela.
MГіnica sentou-se em sua mesa e comeГ§ou a fazer contas. Naquele mГЄs, tambГ©m nГЈo poderia pagar o aluguel a Ignacio, era impossГvel. Ela analisou as ofertas de emprego em vГЎrios sites, nada em que pudesse trabalhar: uma oferta muito bem paga como engenheiro de computação, uma oferta para ser o motorista pessoal de uma celebridade, outra oferta procurando um advogado e assim por diante. MГіnica havia comeГ§ado uma carreira em arquitetura, mas depois de dois anos ela a deixou. Depois disso, ele fez vГЎrios cursos de design de interiores e exteriores, e depois comeГ§ou a trabalhar como assistente de arquitetos, como designer de interiores e outros trabalhos correlatos. Ela tambГ©m trabalhou como jornalista freelancer para vГЎrios veГculos de comunicação.
MГіnica levantou-se da mesa e foi atГ© a janela com um cafГ© na mГЈo esquerda, sua mГЈo mais hГЎbil. Ela ligaria para se informar sobre a oferta de motorista. A princГpio, poderia aceitГЎ-la. A parte ruim era o horГЎrio; ela teria que contratar uma babГЎ para ficar com Samuel pela manhГЈ e levГЎ-lo para a escola.
Ao meio-dia, Г“scar e MГіnica comeram macarrГЈo prГ©-cozido em silГЄncio, com o som de fundo da televisГЈo. Ela estava com uma expressГЈo sГ©ria.
– Mãe, o que tá acontecendo?
– Temos problemas de dinheiro.
Г“scar sorriu.
– Como sempre.
– Isso é engraçado pra você?
– Não, mãe, mas a gente também não tá tão mal.
– Não posso pagar o aluguel, nem os boletos…
– Mãe, para. Com a pensão de viúva e a pensão de órfão, podemos pagar quase tudo se economizarmos um pouco.
– Você tá certo, podemos pagar tudo, menos o aluguel, e já faz vários meses.
– Você pode pedir ajuda pro vovô e pra vovó.
– Não vou pedir ajuda pra ninguém.
– Não seja orgulhosa, mãe. E o meu pai?
– Quê?
– Você sabe, meu pai.
– Vou fingir que não ouvi nada.
– Mas ele teria que te pagar alguma coisa.
– Prefiro não ter que pedir nada a ele.
– Sempre tem a opção de sair com Ignacio.
Os dois riram.
– Acho que vou ligar para tentar uma oferta de motorista muito bem paga.
– Motorista? Você? – Óscar riu.
– Eu não dirijo tão mal.
– E o que acha disso? Eu posso? – Óscar apontou para um folheto em cima da mesa, de um laboratório que precisava urgentemente de CoHu.
– Nem pensar. E menos ainda quando se pede com urgГЄncia. Isso Г© porque eles tГЄm algum vГrus muito perigoso e tГЄm vГЎrias curas possГveis. VocГЄ nГЈo vai ser um experimento de laboratГіrio.
– Depois de amanhã eu faço dezoito, então você não pode me impedir.
– Meus filhos não vão ser CoHu.
– Eu pensei que você defendia as CoHu.
– Eu defendo, mas é muito perigoso.
– A maioria sobrevive.
– É o que dizem, nunca mostram provas.
– Mãe, precisamos de dinheiro. Deixa eu falar com meu pai.
– Vou pensar.
Óscar não conhecia o pai, só tinha visto em fotos antigas de quando adolescente. Se o encontrasse na rua, nem saberia. Nas fotos que ele tinha visto, notou uma grande semelhança: os dois morenos, com olhos escuros, indiscutivelmente atraentes.
Para MГіnica, o pai do seu filho mais velho tinha sido seu grande amor na Г©poca, mas tudo mudou depois que ele a trocou por outra mulher. E, embora o pai de Г“scar tivesse tentado vГЄ-lo quando bebГЄ, MГіnica sempre recusou.
Mais tarde, Samuel estava brincando pela casa com seu irmão. Era quarta-feira, o que significava o dia de uma caça ao tesouro. Depois que Samuel e Óscar fizeram seus deveres de casa, os dois irmãos esconderam um objeto que o outro teria que encontrar; o que encontrasse primeiro ganhava. Quase sempre Óscar encontrava antes, mas fingia que não para deixar seu irmãozinho ganhar.
Naquele dia, Samuel estava mexendo no guarda-roupa de MГіnica, que tinha saГdo para fazer compras. Samuel olhou as gavetas da parte de baixo sem muito sucesso. Depois, pegou uma cadeira para tentar alcanГ§ar a parte mais alta do guarda-roupa. Mas, quando puxou um lenГ§o de MГіnica, que estava lГЎ, ele sem querer jogou uma caixa de papelГЈo no chГЈo. Г“scar, que estava no tГ©rreo, subiu correndo quando ouviu o barulho, pensando que seu irmГЈo tinha caГdo.
– Samuel, você tá bem? – Óscar estava gritando quando subiu as escadas.
– Sim, eu tô bem.
Г“scar entrou no quarto de sua mГЈe. Samuel estava sentado olhando alguns papГ©is, entre os quais algumas fotografias.
– Quem é esse homem? – perguntou Samuel.
– É meu pai.
Óscar não queria se intrometer na privacidade de sua mãe, então começou a recolher os papéis e as fotos e pediu que Samuel continuasse a procura em outra cômodo. De repente, seu coração disparou. Era uma foto de sua mãe grávida com seu pai. Por trás da foto, estava escrito o nome completo de seu pai, que também se chamava Óscar. Mas naquela caixa havia muito mais. Ele fechou a porta e começou a olhar tudo. Havia cartas de seu pai endereçadas a sua mãe, dedicatórias, poesias. Aquela caixa transpirava amor. Ele encontrou um número de telefone, que ele supôs que era do pai. Mas a pior coisa para Óscar foi o que encontrou no fundo da caixa. Havia vários brinquedos e figurinhas, além de várias cartas fechadas. Ele abriu uma das cartas, que estava endereçada a ele. Todos os brinquedos eram para ele, um presente de seu pai. Inclusive havia fotos ainda mais recentes. Óscar chorava por tudo o que havia perdido. Pegou as cartas endereçadas a ele e colocou o resto na caixa. Ao sair do quarto, mudou a expressão e agiu como se nada tivesse acontecido.
– Samuel, não conte pra mamãe que vimos a caixa.
– Por quê?
– Porque ela ia ficar chateada.
Horas depois, MГіnica voltou. Г“scar agiu como se nada tivesse acontecido. Tudo parecia normal.
ГЂ noite, ele lia cada carta, e a cada carta ele chorava mais profundamente, tentando nГЈo fazer barulho.
No dia seguinte, Г tarde, Г“scar segurava o folheto do laboratГіrio em uma mГЈo e, na outra, o celular com o nГєmero do pai gravado. Ele decidiu ligar para ele. Ele saiu da casa com o celular chamando. TrГЄs toques. Quatro toques. Antes de soar o quinto toque, atenderam. Era uma voz masculina, quente e suave, como se fosse de uma pessoa da sua idade. Г“scar congelou. E se ele tivesse outros irmГЈos?
– Alô? – a voz repetiu do outro lado da linha.
Г“scar desligou e entrou em casa. Sua mГЈe estava olhando para ele.
– Aconteceu alguma coisa?
– Não, nada.
– Você não sabe mentir. Vamos, me diga, o que tá acontecendo?
– É que eu tô com dificuldade em um trabalho de ciências.
– Deve ser bem complicado pra ser difГcil pra vocГЄ.
Г“scar sorriu. Ele tinha um QI alto, sempre tirava boas notas.
No jantar, comeram uma receita da avГі de Samuel e Г“scar.
– Tá muito bom, mamãe – disse Samuel.
– Brigada – disse Mónica, maravilhada.
– Mamãe, conta a história de como você conheceu o pai de Óscar.
Mónica olhou na direção de Óscar, que ficou vermelho.
– Nós já sabemos a história do meu pai, você já contou muitas vezes – continuou Samuel, enfatizando o "muitas".
– Tá bom, assim que terminarmos o jantar, eu vou contar pra vocês.
3.В O que acontece em Maiorca fica em Maiorca
Era meia-noite, e, embora Carolina tivesse ido embora hГЎ horas, Keysi ainda estava trabalhando como se estivesse de tarde. Na sala, dava para ouvir a mГєsica de Wagner. Enquanto ouvia a abertura de O HolandГЄs Voador, Keysi acreditava que havia encontrado um antГgeno para o vГrus indiano. Tinha levado cinco dias; sua colega ainda nГЈo havia alcanГ§ado resultados conclusivos. Keysi observou em seu microscГіpio como seu prГіprio vГrus afetava o outro, destruindo-o completamente. Ela pegou o telefone e ligou para Norberto.
– Eu consegui – disse a virologista assim que Norberto atendeu.
– Quem é?
– Keysi.
– Keysi, você tem alguma ideia de que horas são? – A voz de Norberto parecia distante.
– Desculpe, espero não ter te acordado.
– Sim, Keysi, eu tava dormindo. Mas, me diga, o que você conseguiu?
– O antГgeno do vГrus indiano tГЎ pronto para ser testado em uma CoHu.
– Meu Deus, você tá falando sério?
– Totalmente.
– Bem, eu ligo para Clara, embora ela esteja dormindo, pra que possamos fazer os testes amanhã de manhã.
– Amanhã? É muito tarde. E se eu testar em mim mesma?
– QuГЄ? Keysi, nem pense nisso. Eu proГbo.
– Tudo bem, vou esperar.
No tempo que passou desde que Keysi comeГ§ou a estudar o vГrus, o nГєmero de mortos subiu para aproximadamente setenta mil, embora se calculasse que poderia haver cerca de vinte mil que nГЈo tinham sido contados. O caos reinava na ГЌndia. Por causa desse vГrus, todas as fronteiras tinham sido fechadas, e milhares de turistas tinham ficado presos no paГs, esperando que algum laboratГіrio encontrasse uma cura. Era o procedimento padrГЈo quando um vГrus se tornava incontrolГЎvel.
Keysi voltou para casa esgotada. Ela passou por alguns turistas ingleses, obviamente bГЄbados, que estavam andando meio sonolentos. Quando entrou na casa, ligou a TV e preparou algo para comer; nГЈo comia nada hГЎ doze horas. Ela mudou para o canal de notГcias. Keysi ficou espantada; uma nova lei estava sendo preparada em todo o mundo, segundo a qual todos os vГrus ativos deveriam ser reportados, informando todos os detalhes. Keysi pensou nas palavras de Norberto na outra semana. Se todos os vГrus fossem divulgados, onde quer que houvesse um, as pessoas iriam enlouquecer, esvaziar supermercados e entrincheirar-se em suas casas atГ© o vГrus desaparecer.
Keysi se aproximou do Sistema de Controle da casa, um sistema que controlava praticamente todas as funções da casa, e o conectou ao seu celular. No celular, ela clicou em "Encher banheira" e depois nas opções "Água quente" e "Bolhas de sabão".
Ao entrar no quarto para pegar roupas limpas, ela encontrou seu ex-namorado dormindo. Ela abriu o armário sem fazer barulho e pegou as roupas. Tinha que encontrar outra casa logo; a situação estava se tornando cada vez mais desconfortável. Todas as casas que Keysi tinha visto estavam ultrapassadas, sem um Sistema de Controle.
Na manhГЈ seguinte, Г s sete, Keysi, depois de ter dormido apenas algumas horas, entrou pela porta do escritГіrio de Norberto.
– Você testou? – perguntou ela desesperadamente.
– Bom dia pra você também – Norberto olhava para alguns papéis em sua mesa.
Keysi continuou de pГ© olhando para ele.
– Sim – disse ele depois de assinar um papel —, eu testei.
– Primeiras conclusões?
– É um sucesso, por enquanto. – disse ele cautelosamente. – Pensei que vocГЄ e Carolina iam criar um antГgeno para cada vГrus antes de me entregar – Norberto levantou a cabeГ§a para olhar a inglesa.
– Eu sei. Veja bem, quando Carolina saiu, eu tava terminando de criar meu antГgeno, entГЈo perguntei se ela se incomodava que eu lhe entregasse, e ela disse que nГЈo.
– Bem, bom trabalho, Keysi. JГЎ temos um antГgeno, faltam quatro. Isso se nГЈo nos trouxerem mais vГrus. VocГЄ jГЎ viu o que aconteceu em Taiwan?
– Não.
– Incendiaram um laboratГіrio que pesquisava vГrus, como esse. Toda a ilha estГЎ em quarentena. Eu acho que isso vai ser resolvido em breve. O que mais me incomoda Г© que as pessoas tГЈo comeГ§ando a odiar as ilhas que tГЄm laboratГіrios. VocГЄ sabia que no comeГ§o sГі permitiam a abertura de laboratГіrios em ilhas, pro caso de acontecer alguma coisa parecida com essa de Taiwan e houvesse uma epidemia de vГrus? Г‰ um absurdo. Carolina jГЎ chegou?
– Ainda não.
Nesse momento, ouviu-se o som de salto-alto se aproximando, seguido por um perfume feminino de alta qualidade. Uma mulher escultural, de cabelos escuros, alta e magra entrou pela porta do escritГіrio.
– Bom dia, Titania.
– Bom dia, pai.
– O que vocГЄ me traz hoje? Espero que nГЈo seja outro vГrus.
– SГі passei pra dizer oi – Titania sorriu. – e mostrar isso para vocГЄ. – Titania colocou na mesa os papГ©is que estava segurando. Keysi e Norberto se aproximaram e olharam atentamente. – Г‰ uma nova mГЎquina que detecta a presenГ§a de um vГrus a quilГґmetros. Me pediram para testar em Taiwan.
– Em Taiwan? Não dá pra entrar em Taiwan, tá em quarentena.
– Eles que me pediram. Não tem problema, pai, eu vou ficar bem.
Norberto olhava para a filha com preocupação. Sua filha podia até ser a melhor de seu departamento, mas a situação era instável na ilha asiática.
Keysi saiu da sala para deixГЎ-los a sГіs. Assim que entrou na sala onde trabalhava com Carolina, a Sala 4, ela parou para observar tudo: os computadores com sistema de toque hologrГЎfico, as vГЎrias mГЎquinas e outros equipamentos de laboratГіrio nas mesas brancas coladas nas paredes, os bancos roxos em que elas se sentavam, a grande mesa central branca que elas mal usavam e as paredes tambГ©m brancas que refletiam a luz que entrava pela janela, voltada para o sul, cuja vista do mar MediterrГўneo era espetacular, jГЎ que nГЈo havia nenhum prГ©dio na frente.
Keysi comeГ§ou a estudar o vГrus encontrado na fronteira da China com a MongГіlia. Para um vГrus, tinha uma estranha beleza. Assim que tirou as primeiras conclusГµes, ela sabia que levaria um tempo para encontrar um antГgeno para esse vГrus e, como o nГєmero de mortes era baixo em comparação com os outros, mas nГЈo o nГєmero de infectados, ela decidiu deixГЎ-lo de lado, fazer uma anГЎlise preliminar dos outros trГЄs vГrus restantes e, entГЈo, escolher um.
Por volta das nove da manhГЈ, enquanto sua colega estudava o vГrus australiano, Carolina chegou com cara de quem havia dormido pouco. Keysi apontou para o relГіgio hologrГЎfico vermelho na parede.
– Ultimamente não tô dormindo, meus vizinhos tão sempre festejando. Tomara que eles vão embora logo – os vizinhos de Carolina eram quatro jovens franceses que, naquele ano, estavam estudando na Universidade das Ilhas Baleares.
Carolina comeГ§ou a trabalhar. Enquanto isso, Keysi visitou a sala onde a CoHu estava testando seu antГgeno.
– Como eles tão? – perguntou a inglesa a uma jovem enfermeira que tinha acabado de ser contratada pelo laboratório.
– Todos bem.
Ao retornar, Keysi parou no corredor e olhou para a galeria de fotos de seu celular. Em quase todas, ela aparecia sorrindo ao lado de seu ex-namorado. Ela apertou os lГЎbios e segurou a vontade de chorar. Nesse momento, se sentiu desamparada. Tinha deixado a vida inteira para trГЎs por um homem que a tinha abandonado. Ela nГЈo tinha ninguГ©m na ilha.
Carolina percebeu que sua colega tinha entrado pela porta com uma expressГЈo de tristeza no rosto.
– Você tá bem?
– Sim, é só que… você sabe… eu não tenho mais ninguém aqui na ilha.
– Não diga isso, eu tô aqui – Carolina ficou na dúvida se deveria aproximar-se para abraçá-la ou não; ela escolheu não se aproximar.
Keysi ficou surpresa com a reação de Carolina, o que poderia ser o começo de uma amizade entre as duas colegas no futuro.
As duas continuaram trabalhando com a mГєsica de Wagner ao fundo, trocando dados e sugestГµes, em um relacionamento em que havia cada vez mais cumplicidade.
4.В Uma histГіria de famГlia
Mónica, depois de recolher os restos do jantar e limpar a mesa, sentou-se no sofá com os filhos e começou a história, enquanto Samuel olhava para ela impaciente e Óscar começava a ler alguma coisa no celular.
– Conheci o pai de Óscar há muito tempo na escola, quando ele tava prestes a completar doze anos, e eu já tinha completado. Era primavera. Lembro que seu pai – Mónica olhou para Óscar, que fingiu não estar interessado na história que sua mãe estava contando para o irmãozinho. – gostava de cheirar as flores dos pessegueiros da escola, o que chamou minha atenção.
– Tinham pessegueiros na sua escola? – perguntou Samuel surpreso.
– TГnhamos ГЎrvores de todos os tipos – Samuel abriu a boca, surpreso – vocГЄ sabia que a gente tinha aulas de botГўnica?
– Hoje em dia também temos – disse Óscar, sem levantar os olhos do celular.
– Um dia, eu me aproximei de seu pai e perguntei por que ele fazia isso. Ele disse que gostava do cheiro delas. Fui até a árvore e peguei uma flor para cheirar, o que fez com que seu pai se chateasse comigo. Ele não queria que ninguém tocasse nas árvores. Ele ficou sem falar comigo durante o ano todo.
– O que aconteceu depois? – Samuel perguntou, interessado.
– No ano seguinte, ele me pediu ajuda em um assunto. A gente tava estudando mapas antigos, a gente tinha que desenhar os mapas, e eu era muito bom em desenho. EntГЈo, um dia ele se aproximou de mim e perguntou se eu queria fazer o trabalho com ele, e eu disse que sim. No final, acabei fazendo todo o trabalho sozinha. A partir daГ, a gente se via todos os dias no recreio e, depois da aula, a gente sempre voltava junto pra casa.
– E aà vocês se apaixonaram? – perguntou Samuel, curioso.
Г“scar levantou os olhos interessado.
– Alguém já lhe disse que você é um menino muito inteligente? – Samuel começou a rir.
– Sim, você – respondeu o filho mais novo de Mónica.
– Por muitos anos, fomos inseparáveis, até que fiquei grávida de seu irmão.
– E agora, onde ele tá? – perguntou Samuel.
MГіnica olhou para Г“scar, que estava olhando para ela.
– Ele tá no céu com o papai?
– Não, querido, ele foi embora.
– Pra onde? – o menino insistiu.
– Às vezes, tem gente que vai embora, que desaparece da sua vida.
– Como a tia Victoria, que mora em Londres? – Victoria era a irmã do pai de Samuel.
– Sim, tipo isso.
– Então podemos visitar ele?
Mónica estava começando a ficar nervosa.
– Acontece que não sabemos pra onde ele foi – interveio Óscar para ajudar sua mãe e impedir que ela gritasse com Samuel.
Mais tarde, depois que MГіnica colocou o pequeno Samuel na cama, ela foi atГ© a sala e se sentou ao lado do filho mais velho.
– Brigada por agora há pouco.
– Não tem de quê. Eu sei que você nunca gostou de falar sobre meu pai e que, quando você fala, acaba parecendo uma pessoa mentalmente perturbada.
***
No dia seguinte, MГіnica acordou Samuel cedo e o levou para o quarto de Г“scar.
– Quando eu falar três – disse Mónica baixinho.
– Certo.
– Um, dois e… três!
Ao dizer “três”, Samuel pulou na cama de Óscar.
– Parabéns! – disseram juntos Samuel e Mónica, enquanto ela jogava confetes coloridos no aniversariante.
Eram nove e meia da manhГЈ quando a campainha tocou. MГіnica abriu a porta e encontrou Ignacio com uma carta.
– Desculpe, eu já te avisei várias vezes.
Ignacio entregou a carta a Mónica e foi embora. Mónica nem esperou entrar em casa e abriu a carta, rasgando o envelope. Nele havia uma ordem de despejo. Ou pagava o aluguel nos próximos quatro dias ou já podia começar a fazer as malas.
MГіnica ficou atГґnita, nГЈo acreditava que Ignacio a mandaria para a rua. Talvez ela devesse encontrГЎ-lo em um jantar para amolecГЄ-lo, coisa que ela sempre rejeitou, pois o achava repulsivo. Ela pensou em seu filho mais velho, tГЈo determinado, sempre preocupado com o bem-estar dos outros. Ela faria qualquer coisa por seus filhos, inclusive perder a dignidade, mas tambГ©m estava preocupada com o que eles poderiam pensar dela. Talvez ela nГЈo tivesse sido um bom exemplo para Г“scar, mas ela nГЈo queria repetir o mesmo erro com Samuel.
A campainha tocou novamente, e MГіnica correu para a porta na esperanГ§a de que Ignacio tivesse se arrependido. Em vez disso, encontrou RocГo, exatamente o que ela precisava naquela hora.
– Oi, vizinha.
– Oi, RocГo.
– Vi Ignacio vir aqui. O que ele queria? Aconteceu alguma coisa?
MГіnica pensou nos anos em que vinha sido paciente com os vizinhos, momentos em que gostaria de lhes dizer que se metessem nos assuntos deles. Em vez disso, suspirou profundamente e disse educadamente:
– Só queria saber se tenho o dinheiro do aluguel.
RocГo nГЈo parecia muito satisfeita.
– Você vai comemorar o aniversário de Óscar?
– Ele vai comemorar com os amigos à noite.
– E você não vai fazer uma festinha aqui?
– Acho que não.
– Que pena, uma festa seria bem-vinda. Você sabia que Maribel está procurando uma namorada para Ignacio? Você devia se apressar, ou então ele vai escapar de você.
–Não tô te entendendo – disse Mónica, confusa.
– Eu vi que ele te visitou várias vezes, e que tem uma paquera inocente entre vocês.
– Você é realmente sem igual – disse ela em voz alta, sem tentar disfarçar.
– Brigada, eu sei. Sou boa em observar os detalhes – disse ela, demonstrando todo o seu ego. – E então, você quer que eu diga alguma coisa pra ele?
Mónica fechou a porta sem responder. Talvez uma mudança de casa não fosse uma ideia tão ruim, afinal.
Depois de fechar a porta, o telefone, que estava no corredor, começou a tocar. Mónica pegou-o e apertou o botão verde.
– Bom dia, você é a senhora Ibáñez? Estou ligando da empresa de motoristas.
– Sim, sou eu – respondeu meio sem jeito, enquanto se dirigia ao sofá para se sentar.
– Veja, vimos o seu currГculo, e vocГЄ parece uma candidata muito interessante. NГЈo Г© fГЎcil encontrar pessoas tГЈo jovens que sabem dirigir carros antigos. Claro, nГЈo dГЎ pra dirigir os modernos. Poderia comeГ§ar amanhГЈ?
– Isso quer dizer que eu tô contratada? – Mónica perguntou com uma voz muito alta, enquanto sua pulsação aumentava.
– Claro que sim, por que vocГЄ acha que eu liguei? – o homem do outro lado da linha riu. – Sei que o trabalho Г© de segunda a sexta-feira, mas meu cliente precisa ir ao escritГіrio para uma reuniГЈo amanhГЈ. Eu quero deixar as regras bem claras. VocГЄ nГЈo deve falar com ele a menos que ele fale com vocГЄ. Se um dia vocГЄ tiver que levar a esposa ou as filhas dele, vai ser igual. Precisa ser pontual no horГЎrio de chegada, meu cliente odeia atrasos. O trabalho comeГ§a Г s sete e meia da manhГЈ, hora em que vocГЄ tem que tГЎ esperando na porta da casa do meu cliente. ГЂ uma da tarde, vocГЄ deve buscar ele no escritГіrio e levar pra onde ele quiser ir. Assim que ele sair do carro, seu expediente se encerra. Durante seu horГЎrio, vai ter que ficar perto do carro, caso meu cliente precise. TambГ©m Г© possГvel que seus serviГ§os sejam necessГЎrios em outras datas, como Г© o caso de amanhГЈ, mas nГЈo se preocupe, essas horas significam um acrГ©scimo no seu salГЎrio. Pro trabalho de amanhГЈ, vocГЄ vai receber quinhentos e sessenta simeГµes. VocГЄ vai dirigir uma limusine de propriedade do meu cliente, que vamos levar pra sua casa hoje Г tarde.
O simeГЈo era a moeda universal. Trezentos anos antes, a queda no valor de vГЎrias moedas, incluindo o dГіlar, dos Estados Unidos e AustrГЎlia, o peso mexicano e o iene japonГЄs, houve uma grave crise financeira nesses paГses, e decidiu-se que nГЈo havia sentido em ter moedas diferentes no mundo.
Uma situação semelhante ocorreu no caso dos idiomas, e o inglГЄs e o russo foram propostos como lГngua universal, uma ideia que foi rejeitada quase imediatamente, pois considerou-se que seria uma perda de valor cultural parar de falar as outras lГnguas. Atualmente, havia centenas de aplicativos e objetos que serviam como tradutores instantГўneos, sem a necessidade de conhecer o outro idioma.
***
Havia dois tipos de estradas: as antigas e as automГЎticas. As antigas eram estradas construГdas muito anos antes, estavam desatualizadas, tinham sido pavimentadas hГЎ muito tempo e, em geral, recebiam pouca manutenção, devido ao trГЎfego reduzido. Por outro lado, havia as estradas automГЎticas, que recebiam manutenção constante. Enquanto nas estradas antigas os carros precisavam de um motorista que os dirigisse, nas estradas automГЎticas os carros nГЈo precisavam de motoristas, pois estavam conectados a um sistema eletromagnГ©tico central que levava o carro de um lugar para o outro sem necessidade de fazer nada, apenas indicar o local para o qual se quisesse ir. AlГ©m disso, elas funcionavam com energia solar e nГЈo poluГam.
Cada tipo de estrada tinha suas vantagens e desvantagens. Nas estradas automáticas, não havia risco de colisão; o sistema informatizado de vias ao qual os carros estavam conectados traçava a rota, colocava no mapa e configurava para que não houvesse nenhum risco. Desde a introdução das estradas automáticas, cem anos antes, não houve acidentes nesse tipo de via, e por esse motivo a maioria das pessoas usava essa modalidade de estrada.
Durante algum tempo, dirigir em estradas antigas tornou-se moda, especialmente para pessoas ricas que queriam evitar os engarrafamentos das estradas automáticas. Evidentemente, a maioria não sabia dirigir, e tinha que recorrer a um motorista, um trabalho que, graças a essa moda, tinha ressurgido.
MГіnica nГЈo dirigia um carro velho hГЎ anos, entГЈo ela estava nervosa. Decidiu que passaria a tarde dirigindo o carro velho que tinha deixado no estacionamento subterrГўneo, no qual nГЈo tocava desde que tinha se mudado. Se ela ainda o mantinha, era porque havia boatos de que uma taxa seria introduzida para poder circular em estradas automГЎticas, alГ©m do imposto pago anualmente.
MГіnica dirigiu atГ© um antigo parque industrial abandonado de sua cidade, Elche, onde seria instalado um novo laboratГіrio de pesquisa de vГrus, apГіs sua demolição e reforma, previstas para o final do ano.
AtГ© chegar ao complexo industrial, a vГЎrios quilГґmetros de sua casa, o motor do carro de MГіnica morria toda vez que ela parava.
– Vai, Mónica, você consegue. – disse ela a si mesma. – Faça isso pelos seus filhos e tente não ser demitida no primeiro dia.
MГіnica praticou a tarde toda, atГ© que ela foi buscar Samuel na escola.
***
Eram doze e meia quando Г“scar entrou em casa.
– Foi tudo bem? – disse Mónica do sofá.
– Oi, mãe, tudo bem.
– Chegou cedo.
– Depois de tantas horas com eles, eu já tava cansado – explicou um sorridente Óscar.
– Seu irmão sentiu sua falta hoje à tarde.
– Por que você nunca me fala sobre meu pai? – ele perguntou, mudando de assunto e se lembrando das cartas que sua mãe tinha escondido.
– Você realmente quer falar sobre isso?
– Sim.
– Eu não tô preparada.
– Mãe, já se passaram dezoito anos, eu quero conhecer ele.
– Eu nГЈo tenho notГcias dele hГЎ muito tempo. Eu queria poder te dar informações. Mais ainda, queria poder te dizer que seu pai era maravilhoso ou que ele procurou por vocГЄ, mas ele nГЈo procurou, nunca se preocupou com vocГЄ – mentiu MГіnica.
Óscar entrou no banheiro para tentar se acalmar, já que há dois dias havia descoberto as cartas de seu pai. Tinha a sensação de ter vivido a vida toda com uma estranha. Já não conhecia mais sua mãe. Sempre tinha pensado que seu pai era a pior pessoa do mundo por causa do que sua mãe dizia para ele. Mas, agora que tinha descoberto parte da verdade, ele duvidava que sua mãe fosse melhor. Que motivo ele poderia ter para não deixar que se aproximasse dele?
MГіnica subiu as escadas para ver se Samuel continuava dormindo; quando desceu novamente, encontrou Г“scar assistindo TV angustiado.
– Olha, mГЈe, um laboratГіrio de vГrus em Taiwan explodiu.
– É uma tragédia. É por isso que me dá medo que queiram construir um laboratório aqui.
– É normal, Elche é a cidade mais importante da Espanha, não fazia sentido que não tivesse um aqui – disse Óscar, empolgado.
– Você vai continuar com essa besteira de ser CoHu?
–Besteira? Você acha besteira arriscar a vida pra salvar os outros? Acho que você tem que ser muito corajoso pra fazer uma coisa dessas – Óscar estava ficando exaltado.
– Você mesmo acabou de dizer, arriscar a vida. Qual a necessidade de você fazer isso?
– AlguГ©m tem que fazer isso, se nГЈo todos morrerГamos. Se ninguГ©m se arrisca, ninguГ©m ganha.
– E tem que ser meu filho?
– Se for preciso, sim.
– O que você quer provar?
– Só tô tentando ajudar. Ajudar as pessoas doentes a se curarem, ajudar você e Samuel com o dinheiro.
– Você não precisa, já tem muitos candidatos.
– Você é uma hipócrita, mãe. Sempre disse que as CoHu são heróis, mas não lhe parece certo que seu filho seja uma. CoHu sim, mas sem sujar as mãos. Que mãe corajosa – Óscar tinha lágrimas nos olhos.
– Você vai falar comigo sobre coragem? Quem criou você e Samuel? Quem deu tudo pra vocês?
– Acho que a mesma pessoa que me nega a chance de conhecer meu pai desde que eu nasci – disse Óscar, tentando recuperar a compostura.
– NГЈo diga bobagens, seu pai abandonou a gente, eu nГЈo tenho notГcias dele hГЎ dezoito anos.
– Pare de mentir, eu sei de tudo, encontrei sua caixa.
– Você bisbilhotou minhas coisas?
– Eu ter encontrado sua caixa te preocupa mais do que o fato de que você mentiu pra mim a vida toda? – Óscar desabou e começou a chorar.
– Só fiz isso para te proteger.
– De onde você tirou essa frase? De um filme?
– PeraГ, onde vocГЄ vai?
Óscar abriu a porta da frente e saiu, batendo a porta com força.
– Óscar, espera.
MГіnica saiu de casa, mas jГЎ era tarde demais. Seu filho, que era campeГЈo de atletismo, jГЎ tinha sumido de sua vista.
5.В Dois sГЈo melhor que um
Keysi trabalhava no vГrus encontrado em SГіria; estava sendo difГcil estudГЎ-lo. O computador tocava A Cavalgada das ValquГrias, Гіpera de Wagner. Carolina, que mostrava sinais claros de sono, tomou notas em um caderno para adicionГЎ-las depois Г sua tese. Keysi apertou o botГЈo de pausa e disse em voz alta para a colega:
– É como se fossem dois vГrus, mas Г© sГі um.
Carolina se aproximou de Keysi e olhou para os dados mostrados pelo computador.
– Keysi, vocГЄ misturou dois vГrus? Esses dados sГЈo impossГveis. Aqui tem variantes de dois vГrus, claramente Г© algum erro.
– O pessoal da coleta de vГrus deve ter cometido um erro.
– A gente devia reportar.
– Mas Carolina, eles poderiam ser despedidos, um erro tão sério é motivo de demissão.
– Me surpreende que você pense assim, já que você passa mais tempo aqui do que lá fora, de tanta preocupação com as pessoas infectadas.
– Eu sei, mas também me preocupo com meus colegas.
– Tá bom. Vou processar minhas amostras e comprara os resultados com os seus. Talvez tenha sido um erro.
– Brigada, Carolina. Vou ligar pro hospital de SГіria para descobrir como o paciente idoso estГЎ evoluindo, e aproveito pra pedir que mandem mais amostras, se possГvel.
Carolina se virou, continuou com o que estava fazendo e, vinte minutos depois, comeГ§ou a estudar o vГrus de SГіria. Keysi foi procurar o nГєmero de telefone do hospital de SГіria.
Jacinto, um belo rapaz de 27 anos da ГЎrea de coleta de vГrus, entrou na Sala 4, onde Keysi e Carolina trabalhavam diariamente, assustando a segunda, que estava concentrada em seu trabalho.
– Você não pode avisar antes? – perguntou Carolina, irritada.
– Desculpa.
– Desculpa? Jacinto, Keysi e eu trabalhamos com material muito delicado, e somos algumas das poucas pessoas no laboratório que não usam roupas de isolamento ou qualquer proteção. Então, por favor, tenha mais cuidado.
– Eu sei, mas vocГЄ nunca Г© exposta diretamente. Eu corro mais riscos quando vou coletar os vГrus. Meu traje pode rasgar, e eu posso me infectar.
– E sua interrupção poderia ter me feito largar esse frasco que contГ©m esse vГrus misterioso que eu tenho nas mГЈos, e que ainda nГЈo achamos uma cura, e infectar nГіs duas – Carolina nГЈo queria dar o braГ§o a torcer.
– Por que você diz que é misterioso?
– Porque todos os vГrus tГЄm suas prГіprias variantes simГ©tricas. Desde que conseguimos "capturar" os vГrus, pudemos descobrir que todos eles tГЄm o mesmo padrГЈo simГ©trico, com suas prГіprias caracterГsticas.
– Sim, eu já sabia disso. Trabalho aqui, lembra?
Jacinto sempre foi apaixonado por vГrus, motivo pelo qual comeГ§ou a estudar biologia, para depois se especializar em virologia molecular. Mas, depois de perceber que teria que trabalhar trancado em laboratГіrio, mudou de biologia para coleta e tratamento especializado de micro-organismos.
– Ao submeter os vГrus Г viГіcula – a viГіcula era uma mГЎquina que mostrava todas as caracterГsticas observГЎveis de um vГrus, o que seria o ponto de partida no estudo de cada um deles —, entre outros dados, este grГЎfico nos mostra… – Carolina apontou para tela do computador.
– A tabela caracterГstica.
A tabela caracterГstica era um grГЎfico semelhante a uma cadeia de DNA, mostrando as qualidades Гєnicas dos vГrus.
– Exato. Aqui podemos ver duas tabelas caracterГsticas interligadas, o que Г© totalmente impossГvel. Г‰ por isso que acreditamos que esse vГrus foi submetido a algum tipo de contaminação que o alterou.
– Carolina, isso Г© impossГvel. Eu mesmo coletei esse vГrus.
***
Keysi ligou para o hospital onde estava o paciente idoso de SГіria, selecionando “chamada hologrГЎfica” e colocando o telefone na palma da mГЈo. Apenas os celulares modernos tinham o recurso de ligação hologrГЎfica, os outros tinham apenas opГµes de chamadas de voz ou vГdeo. Ao responder do outro lado da linha, apareceu no telefone de Keysi um holograma de uma mulher de meia-idade, com evidГЄncias de jГЎ ter passado por tratamentos estГ©ticos no rosto.
Keysi explicou à mulher o motivo de sua ligação.
– Lamento dizer, senhorita, mas o paciente morreu ontem Г noite. A boa notГcia Г© que, por enquanto, nГЈo hГЎ mais infectados.
A mulher se comprometeu a enviar mais amostras do vГrus no mesmo dia e se despediu.
Keysi voltou Г Sala 4, onde encontrou Carolina conversando com Jacinto.
– Eu tenho que ir. Tchau, Keysi – disse Jacinto, que saiu da porta consultando a localização de um vГrus de que ele teria que coletar amostras.
– Não diga nada – disse Carolina, apontando o dedo para sua colega.
Keysi tinha a teoria de que Jacinto estava apaixonado por Carolina, o que a deixava nervosa, pois ela sГі via seu jovem colega como um amigo.
– Eu nГЈo ia dizer nada. – Keysi sorriu, deixando seus pensamentos para si mesma. – Tenho mГЎs notГcias. – anunciou. – O paciente idoso morreu.
– Tem mais infectados?
– No momento nГЈo. Eles vГЈo nos enviar mais amostras hoje. – Keysi olhou pela janela; era um dia ensolarado, os turistas estavam passeando tranquilamente, e o mar estava brilhando. – Acho que vou continuar estudando o vГrus da AustrГЎlia.
– Por que você não descansa um pouco? Você tá entocada aqui há quase 24 horas, precisa descansar.
– O que você acha que os parentes dos infectados pensariam se soubessem que, em vez de procurar uma cura, eu tô descansando? – perguntou Keysi, exaltada.
– Não acho que você vai ajudar em nada cansada.
– Eu não tô cansada! – protestou a inglesa.
Por volta das duas da tarde, as amostras de vГrus chegaram atravГ©s da Rede de Transporte de Mercadorias Altamente Perigosas. Era uma rede de pequenos tubos Г prova de fogo, anticongelantes e inquebrГЎveis, de dois metros de diГўmetro, muito rГЎpidos, subterrГўneos e que conectavam os laboratГіrios. No caso de ilhas, como em Maiorca, o vГrus era transportado ao seu destino por um aviГЈo especial. No inГcio, a construção comeГ§ou como uma rede de transporte de mercadorias, mas, devido aos altos custos, uma rede menor e de uso mГ©dico foi construГda em seu lugar. A rede foi construГda paralelamente Г Rede de Transporte SubterrГўneo, uma rede que transportava passageiros, e que ligava praticamente todo o mundo, com uma velocidade que beirava os dois mil quilГґmetros por hora.
Clara se apressou em levar as amostras para a Sala 4.
– TГЎ aqui. Qualquer coisa, me chame – se ofereceu Clara, que naquele dia usava um penteado retrГґ, tГpico de dois sГ©culos atrГЎs, que simulava a figura de um leГЈo feroz.
– Acho que vou sair um pouco.
– Eu também. Eu vou comer lá no meu apartamento. Você poderia vir comigo. Como as meninas que moram comigo tão viajando, eu tô sozinha, e assim você não teria que ver… – Carolina evitou falar o nome de Raúl, ex-namorado de Keysi.
– Não precisa, mas eu agradeço.
Carolina foi embora correndo, derramando uma lata de refrigerante pelo corredor do laboratГіrio. Keysi ficou por mais alguns minutos, verificando o vГrus estranho, tentando encontrar um erro. Ao sair do laboratГіrio, Jacinto estava esperando por ela.
– Keysi, espera.
A britГўnica parou, esperando que Jacinto continuasse falando.
– Você me faz um favor?
– Outro?
– É bem pequeno.
– Vamos ver, diga – concordou a inglesa.
– Você me ajuda a conquistar Carolina?
Keysi fez uma cara de susto.
– Jacinto, eu sei que Г© difГcil, mas aceite, ela nГЈo gosta de vocГЄ.
– Mas vai gostar – disse ele alegremente.
– Você nunca desiste?
– Dela não.
– Há quanto tempo vocês se conhecem?
– Há uns dois anos, quando comecei a trabalhar aqui.
– E desde quando você tá apaixonado por ela?
– Acho que desde dois segundos depois que nos conhecemos.
– Eu não acredito em contos de fadas – disse ela, de forma seca.
– Diz a pessoa que largou a vida inteira e veio morar na Espanha pouco depois de conhecer um cara.
Keysi ficou vermelha.
– Não posso te ajudar.
– Sim, você pode, mas não quer. Vamo lá, não custa nada, você passa o dia todo com ela.
– Não temos esse tipo de relação.
Keysi continuou andando atГ© chegar ao seu apartamento. Ao entrar, ela ficou feliz por estar sozinha. Ligou a mГЎquina de cozinhar, colocou todos os ingredientes nos compartimentos indicados e esperou que a merluza com batatas assadas acompanhada de molho de alho-porГі estivesse pronta.
A britГўnica comeГ§ou a comer com pressa para terminar o mais rГЎpido possГvel e poder retornar imediatamente ao laboratГіrio. Sua obsessГЈo por descobrir antГgenos crescia rapidamente a cada dia. Quando ela estava terminando de comer, RaГєl entrou no apartamento, acompanhado por uma mulher morena muito jovem e atraente.
– Ah, desculpe, Keysi, eu não sabia que você tava aqui.
– Não se desculpe.
A mulher permanecia em silГЄncio junto Г porta, carregando uma pequena mala na mГЈo.
– Essa Г© minha irmГЈ, Marina, ela veio de Alicante – RaГєl e toda a sua famГlia eram dessa cidade – para passar alguns dias aqui de fГ©rias.
Keysi limpou as sobras de comida do rosto com um guardanapo com cheiro de baunilha – o tipo favorito da inglesa —, se aproximou de sua ex-cunhada e a cumprimentou.
Marina e Keysi conversaram alegremente por um tempo, atГ© que a primeira saiu com o irmГЈo, que queria mostrar para ela aquela bela cidade Г beira-mar.
Keysi mal tinha dormido nos últimos dias, mas, embora tivesse dito à colega que não estava cansada porque não queria admitir, ela estava. Ela se recostou no sofá com a intenção de fechar os olhos por alguns segundos, que se tornaram horas.
***
Carolina se sentiu vazia quando entrou em seu apartamento, na zona norte da cidade. Ela morava com duas estudantes de direito, uma de ValГЄncia e outra de Barcelona, que tinham viajado para Nice. Com o tempo, elas tinham se tornado grandes amigas, apesar de nГЈo terem muito em comum.
Ela abriu a geladeira na esperança de achar algo gostoso para comer, mas tudo o que encontrou foram restos de comida que estavam com um cheiro desagradável. Ela fechou a geladeira e foi até o restaurante que havia embaixo de seu apartamento.
Era um restaurante retrô, a tecnologia mal tinha chegado naquele lugar. Na maioria dos restaurantes, todos eram atendidos por hologramas que reagiam à voz e enviavam pedidos dos clientes para a cozinha, onde equipamentos e máquinas preparavam a comida automaticamente. Na maioria das vezes, o resultado não era agradável para o cliente; em troca, os preços eram extremamente baixos, o que era viável porque não era preciso pagar salários.
Um homem de meia-idade e um pouco acima do peso cumprimentou Carolina calorosamente, saindo de trás do bar e abraçando-a.
– Que bom que você veio me ver – disse Pedro.
– Eu vim pra comer.
– Melhor, melhor – o homem ficou muito satisfeito.
Carolina olhou para as mesas; todas estavam vazias.
– Como vão os negócios?
– Como pode ver, mal. Eu tive que despedir meu cozinheiro, agora faço tudo. Essas máquinas só criam desemprego; se você não sabe como criar robôs, é cientista ou conhece alguma tecnologia de informática, já não serve mais para nada.
– Não diga isso.
– Quantas profissГµes jГЎ foram extintas? Taxistas, entregadores, motoristas de Гґnibus, tradutores, operadores de linhas de produção, apresentadores de televisГЈo, sem falar dos professores, que sГі sГЈo deixados nas escolas para nГЈo assustar as crianГ§as. Sobraram poucos de nГіs, cozinheiros, vendedores e tal. Inventaram atГ© uma mГЎquina que cria mГЎquinas! Esse mundo tГЎ deixando de nos pertencer. Cuidado pra que nГЈo inventem maquininhas que sabem descobrir antГgenos.
Carolina ficou pensando no pai, que trabalhou como bibliotecГЎrio antes de ser substituГdo por um holograma, e em seus professores da escola e da faculdade, todos hologramas inteligentes tambГ©m. A maiorquina pensava que talvez Pedro tivesse razГЈo, e os seres humanos estivessem em perigo de extinção, sendo eles mesmos seus piores inimigos.
Pedro preparou para Carolina um prato de caracóis com molho de tomate, acompanhado de um bife. Em todo o tempo em que ela esteve no restaurante, nenhum cliente entrou, o que lhe deu pena. Ela gostava do homem, o conhecia desde o dia em que se mudou, quando ele se ofereceu para ajudá-la a carregar sua mudança.
Logo depois, Carolina foi ao laboratГіrio com sua bicicleta; odiava os carros, especialmente os engarrafamentos que eles provocavam.
Quando entrou pela porta da Sala 4, ficou surpresa por nГЈo ver sua colega trabalhando, mas nГЈo se importou.
Carolina iniciou o procedimento do zero com as novas amostras vindas de SГіria. Depois de quatro horas muito longas, o processo preliminar foi concluГdo, faltando apenas comparar os dados e tirar as conclusГµes. Carolina esperava que os resultados fossem completamente opostos. Depois de comparar os dois resultados, ela nГЈo poderia ter ficado mais chocada. O que ela tinha acabado de descobrir poderia mudar a maneira como os biГіlogos estudavam vГrus.
– Não acredito! – disse Carolina em voz alta, e imediatamente ligou para Keysi, que havia chegado alguns minutos antes e conversava com Clara e Norberto.
A britГўnica chegou correndo.
– O que aconteceu?
– NГЈo houve contaminação, sГЈo dois vГrus. Os vГrus tГЈo evoluindo, ou pode ser que o nosso sistema imunolГіgico continue enfraquecendo.
Naquele momento, Norberto entrou.
– Norberto, você tem que ver isso.
O diretor do Farol da Luz se aproximou e olhou para o que Carolina estava lhe mostrando.
– Impressionante – disse Norberto, surpreso com a descoberta de suas duas funcionárias favoritas, tirando sua filha Titania.
– Você precisa divulgar, é perigoso ter essa informação e não compartilhar – disse Keysi. Seu chefe estava olhando para ela com uma expressão muito séria.
– Houve outro caso – Norberto comeГ§ou a contar. – hГЎ muito tempo. – Norberto aproximou-se da porta, certificou-se de que ninguГ©m estava ouvindo e fechou-a. – Foi hГЎ dez anos, no oblast de Irkutsk, na RГєssia. Desde que existem as cepas de vГrus mortais, produto de nossos avanГ§os mГ©dicos, dois ou mais vГrus nunca viveram em um mesmo corpo. Sabemos que quando um vГrus invade o seu corpo, outro nГЈo pode entrar, pois o corpo jГЎ estГЎ doente. HГЎ dez anos, um homem de oitenta anos foi encontrado morto em sua casa, com um fio de sangue saindo da boca. Imediatamente, ligaram pra uma unidade especializada em coletar cadГЎveres infectados por vГrus. Quando chegaram ao laboratГіrio, comeГ§aram o processo de investigação, pura rotina. – Norberto pegou um dos bancos e sentou-se, com Carolina e Keysi observando-o atentamente. – Quando o biГіlogo que o examinava iniciou o processo, nГЈo percebeu nada de peculiar, nada o fez suspeitar que o corpo era portador de dois vГrus. O biГіlogo continuou o procedimento, quase terminado, quando notou as feridas internas do corpo. – Norberto esfregou os olhos. – A primeira coisa que ele pensou foi que o vГrus era extremamente perigoso, entГЈo ele saiu da sala e foi atГ© o compartimento que serve como uma passagem entre o corredor e as salas altamente perigosas. Ele fechou a porta com o cГіdigo criptografado e acionou o processo de remoção do vГrus para eliminar quaisquer vestГgios do vГrus que ele carregasse. Ele desabotoou o traje de isolamento e alertou os membros da equipe de coleta para que fossem particularmente cautelosos. Quando voltou pra dentro, viu uma coisa realmente incomum: o cadГЎver estava se decompondo a uma velocidade espantosa. Nenhum vГrus registrado apresentava esses sintomas post-mortem. Mas tinha outra coisa: os ossos tavam ficando pretos. Depois de mais dois dias de pesquisa, o biГіlogo descobriu algo que julgavam impossГvel: um corpo podia abrigar dois vГrus ao mesmo tempo. O biГіlogo, fascinado por essa descoberta mГ©dica, continuou a estudar os restos do corpo, bem como as amostras de vГrus que ele conseguiu extrair dele. – Keysi e Carolina estavam em silГЄncio, concentradas no relato do chefe. – Uma manhГЈ, quando o biГіlogo chegou ao seu posto de trabalho, descobriu outra coisa. NГЈo havia mais dois vГrus, e sim apenas um. Os dois vГrus sofreram mutação, transforman-do-se em um vГrus novo e mais poderoso. Isso aconteceu inexplicavelmente e, que a gente saiba, nunca mais aconteceu. Espero que vocГЄs sejam discretas, e com isso quero dizer que essa informação nГЈo sai desta sala. NГЈo falem sobre isso em pГєblico, entenderam?
Keysi e Carolina concordaram.
– Podemos ver amostras desse vГrus ou ler os relatГіrios?
– NГЈo acho que isso seja relevante, os vГrus sГі devem sair das CГўmaras Isoladas de SeguranГ§a quando for realmente necessГЎrio.
As CГўmaras Isoladas de SeguranГ§a eram centros de armazenamento ocultas no subsolo ou no fundo do mar que mantinham amostras de vГrus e seus antГgenos. Cada laboratГіrio tinha uma, e a o do laboratГіrio de Norberto ficava a dois quilГґmetros ao sul de Maiorca, escondida no fundo do mar. Era acessada atravГ©s de um submarino, e, para entrar, primeiro era preciso ter uma autorização e, depois, passar por uma sГ©rie de longos e rГgidos controles de seguranГ§a.
As Гєnicas CГўmaras Isoladas de SeguranГ§a que nГЈo continham amostras de vГrus eram os arquivos com o acervo histГіrico da China, AustrГЎlia, CanadГЎ e FranГ§a, as hortas de sementes da IslГўndia, Paraguai e NamГbia e os centros de dados de tecnologia do JapГЈo e da AntГЎrtida.
– VocГЄ fez um Гіtimo trabalho, mas infelizmente ninguГ©m vai ficar sabendo. Como vai com os outros vГrus? Eu tГґ especialmente interessado no que foi encontrado na Noruega. O nГєmero de infectados aumentou pra aproximadamente doze mil e quinhentos.
– Eu tenho dois possГveis antГgenos, mas eles ainda nГЈo tГЈo prontos. Com sorte, termino nessa semana – informou Keysi.
– Eu tГґ quase terminando um antГgeno pro da AustrГЎlia.
– Perfeito. Assim que tiverem prontos, me informem. Muita gente tá morrendo.
Norberto saiu da sala e as deixou trabalhando. Estava preocupado; sua filha estava em Taiwan, cercada por muitos vГrus mortais, e ele nem podia perguntar como ela estava, jГЎ que as comunicações tinham sido suspensas.
Enquanto trabalhavam, Clara entrou de repente, quando Carolina carregava amostras do vГrus apelidado de areia que voa, fazendo com que ele escorregasse de suas mГЈos e caГsse.
– Ai, meu Deus! – gritou Keysi aterrorizada. Clara também gritou, e depois saiu correndo.
– Calma! Não quebrou. Repito, não quebrou – por sorte, Carolina havia enrolado a esfera em um plástico protetor.
Clara voltou para a sala, ofegante.
– Menos mal. – Clara olhou para o frasco para ter certeza. – Eu tava vindo pra comunicar que a presidente da Espanha vai visitar o laboratório, basicamente pra tirar uma foto – Clara se virou para sair.
– Quando ela vem? – perguntou a maiorquina.
– Ah, sim! – Clara ainda estava ofegante. – Eu tô muito empolgada, acho que devia ir à academia. – Clara sorriu. – Ela vai vir na próxima semana. Vai ter uma grande festa, e ela vai nos entregar o prêmio de melhor laboratório da Espanha.
– Não tenho nada pra vestir – reclamou Carolina, quando elas voltaram a ficar sozinhas.
– Eu posso emprestar algumas roupas pra você.
– Vamos juntas pra uma loja de roupas amanhã?
– A gente tem muito o que fazer – disse ela, com os braços abertos.
– Eu preciso de você, você tem estilo. Não vai te fazer mal tirar uma manhã de folga. Quando foi a última vez que você não trabalhou?
– Carolina, hoje eu dormi a tarde toda.
– Isso é normal, você quase não dorme.
– Tá bom, eu vou com você – concordou Keysi, que se aproximou do computador, colocou o dedo no reprodutor de música e clicou em As Fadas, de Wagner.
***
Elas chegaram a uma loja de roupas, aberta 24 horas por dia, por volta das oito da manhã. Os funcionários da loja eram dois hologramas inteligentes que eram ativados por voz. Keysi e Carolina entraram na loja de roupas, passando suas pulseiras na frente da tela de identificação.
As pulseiras que usavam criavam um avatar personalizado muito realista para todas as lojas, visГvel pelo celular. Ao aproximar a pulseira do cГіdigo de identificação de cada peГ§a, o avatar automaticamente colocava a peГ§a, para uma visualização melhor e com mais precisГЈo de como ela se encaixaria, sem a necessidade de experimentГЎ-la. Poucas lojas continuavam mantendo os provadores.
A porta de saГda era diferente da de entrada. Se a pessoa quisesse sair, precisava passar por um scanner, que detectava se ela estava usando roupas que nГЈo foram pagas; nesse caso, a porta nГЈo abria, impedindo que a pessoa saГsse. No inГcio da implementação do sistema de scanner nas lojas, houve problemas, e muitas vezes os cГіdigos nГЈo eram bem identificados, fazendo com que as pessoas nГЈo conseguissem sair.
– Eu não gostei de nada – Carolina olhava para as roupas, pouco convencida.
– Que tal essa? – Keysi mostrou a ela uma camiseta amarela com decote em V e ombros em forma de dodecaedro.
– Eu queria uma coisa mais chamativa.
A inglesa aproveitou o momento para falar sobre Jacinto.
– Por que você não dá uma chance pra Jacinto?
– Ele não me pediu.
– Você sabe o que ele sente por você.
– Eu sei o que você acha.
A britânica começou a olhar um vestido verde em um canto distante. A parte de baixo era mais clara, enfeitada com contas de prata.
– Você devia levar, ia ficar bem em você – disse Carolina, aproximando-se por trás.
– Custa setecentos simeões, é muito.
– Ok, se você não comprar, eu compro pra você.
– Não, Carolina, é muito dinheiro.
– Keysi, é o meu dinheiro, e, se eu quiser te dar um vestido, eu dou. Você passa o dia no laboratório, não faz mal que alguém te dê um presente. Aliás, você já encontrou uma casa? Porque ter que continuar morando com seu ex… enfim, deve ser complicado.
– Não é, a gente tá se dando bem. E não, não encontrei nada que eu goste, são todas casas antigas.
– As casas antigas tão na moda agora, eu mesma moro em uma.
– Eu nunca morei em uma. Em Birmingham, eu morava em uma casa que era tipo um chalé, bem moderna. Na Alemanha, também tinha um Sistema de Controle, assim como aqui.
– Você não quer tentar? Digo isso porque tem um quarto vazio no meu apartamento.
– Eu não me vejo morando com outras pessoas.
– Você acha que sobreviveria sem que as luzes se acendessem sozinhas ou tendo você mesma que dar a descarga?
– São avanços, facilitam a nossa vida.
– Também geram desemprego. Debaixo da minha casa tem um restaurante retrô. Ninguém entra. No final, vai acabar fechando.
– Gosto mais dos retrôs do que dos modernos, mas admito que vou muito mais nos modernos porque são mais rápidos.
– Sim, é verdade, mas a comida é uma merda.
– Não em todos.
– Tá, pode ser que em toda Maiorca tenha uns dois ou três que sirvam comida boa, mas em outros lugares também não é tão ruim. Quer dizer, a comida dos robôs pessoais de cozinha é muito boa.
– É verdade. Acho que é porque já existiam há séculos e foram melhorando, e, como nos restaurantes modernos as pessoas não reclamam, e mais e mais pessoas vêm, eles não melhoram.
– Muitas pessoas reclamam, mas da boca pra fora.
– Veja! – Keysi apontou animada para um longo vestido vermelho escuro com mangas compridas. – Leve esse, tenho certeza que vai ficar lindo em você.
Carolina se aproximou e passou o pulso pelo código da peça. Automaticamente, seu avatar pessoal vestiu a roupa, convencendo-a do resultado.
– Adorei, Keysi, muito obrigada por encontrar. Se dependesse de mim, eu não teria visto.
– Não tem de quê. Mas se você me der o vestido verde, eu te dou o vermelho.
– Me parece justo.
***
Dois dias depois, Carolina acreditava ter encontrado um antГgeno para o vГrus da AustrГЎlia.
– Acho que consegui – disse Carolina, depois de pausar a música.
– Deixe eu dar uma olhada – Keysi revisou os dados. – Tomara que funcione.
– Vou chamar Clara.
Antes que a maiorquina saГsse da sala, Norberto apareceu.
– Onde você tava indo?
– Avisar pra Clara que eu tenho um possГvel antГgeno pro vГrus da AustrГЎlia.
– Ótimas notГcias, mas lembre que vocГЄ pode avisar ela daqui – Norberto apontou para o teledor, um instrumento que permitia a comunicação com todo o laboratГіrio por meio de ligações ou videochamadas.
– Eu pensei que, pela importГўncia da notГcia, eu deveria contar pessoalmente.
– Tá bom. Tenho que contar uma coisa, e vocês não vão gostar. – Norberto ficou sério. – Na próxima semana, um grupo de virologistas chineses do prestigiado laboratório Árvore Alta vai nos visitar. Não se trata de uma visita de cortesia, eles querem ver como trabalhamos e, é claro, querem trabalhar com vocês enquanto estiverem aqui.
– Mas isso pode atrasar nosso trabalho – reclamou a inglesa.
– De fato, esse Г© o meu maior receio. Se, em vez de pesquisar, vocГЄs tiverem que ensinar tГ©cnicas, como nossos dispositivos funcionam e assim por diante, fico preocupado que vocГЄs demorem muito para encontrar antГgenos. Vou fazer o meu melhor pra que eles deixem vocГЄs em paz. Keysi, como tГЈo indo os possГveis antГgenos que vocГЄ me contou?
– Tem uma coisa que eu nГЈo entendo. Quando aplico o vГrus nas cГ©lulas sintГ©ticas e depois injeto meus antГgenos, o vГrus cresce, nГЈo sei como, mas eu maximizo ele, quando na verdade tento fazer o oposto.
– Claramente, você tem uma ou mais variáveis ao contrário – disse Carolina.
– Eu pensei nisso, fiz outras combinações coerentes, mas ainda não funciona.
– Às vezes, o mais coerente é ser incoerente – disse Norberto.
– E a CoHu do vГrus indiano? – perguntou Keysi, preocupada que seu antГgeno tivesse falhado.
– Todos em perfeito estado e sem efeitos colaterais, vocГЄ nГЈo precisa se preocupar. O antГgeno foi um sucesso.
Duas horas depois, uma CoHu estava pronta para testar o antГgeno criado por Carolina. Ele era um jovem de trinta e tantos anos, que estava suando muito deitado em uma maca.
– Relaxe – disse uma das enfermeiras que trabalhava nas Salas de Testes.
– VocГЄ tem famГlia? Filhos? – perguntou Carolina para acalmГЎ-lo.
– Dois divórcios, quatro filhos – respondeu o homem, sem olhar para ela.
– Você é muito corajoso, poucas pessoas se arriscam a ser CoHu.
– Faço isso pelos meus filhos.
– Você quer dormir durante o processo? Eu tenho que avisar que isso pode te afetar negativamente – informou a enfermeira.
– Você me perguntou se eu quero morrer dormindo?
– Não diga isso, você não vai morrer.
– Sinceramente, não me importo. Sei lá quem criou esse soro milagroso que vão colocar em mim.
– Esse soro milagroso, como você chama, é o que possivelmente vai evitar que milhares de pessoas morram e muitas outras sejam infectadas e acabem do mesmo jeito. E fui eu que criei – disse Carolina, irritada.
– Desculpe. – disse o homem, olhando para o rosto de Carolina pela primeira vez. – Você é muito nova, eu não sabia que as pessoas que pesquisavam essas coisas eram tão jovens. Você também é muito bonita.
Carolina ficou vermelha com o elogio do homem.
– Vai doer? – perguntou a CoHu.
– Não sei – respondeu a maiorquina.
A enfermeira entrou no mГіdulo de contenção onde a CoHu estava. Vestida em seu traje de isolamento, aproximou-se dele, injetando o vГrus, para em seguida injetar o antГgeno.
– Vou ficar um tempo observando ele. Se precisar de ajuda, ligo pra um dos médicos.
– Agora só nos resta esperar – disse Carolina à enfermeira.
6.В VocГЄ se perdeu, mas eu te encontrei
Samuel acordou Г s quatro da manhГЈ chorando por causa de um pesadelo e encontrou MГіnica no andar de baixo, sentada no sofГЎ e parecendo triste. MГіnica estava acordando todos os seus conhecidos e vizinhos durante toda a noite para perguntar se eles sabiam onde estava seu filho Г“scar. NinguГ©m sabia de nada.
MГіnica continuava sentada no sofГЎ, com Samuel dormindo com a cabeГ§a em seu colo, com um sentimento de culpa pela discussГЈo com o filho. A Гєnica pessoa para quem ele nГЈo tinha ligado era o pai de seu filho, mas ele rapidamente descartou que Г“scar pudesse estar com ele, pois nГЈo sabia onde ele morava e nГЈo tinha levado o celular, entГЈo era praticamente impossГvel.
O despertador começou a tocar às sete da manhã, e nesse dia ela começaria a trabalhar novamente. Mónica levantou-se da cama depois de ter dormido só alguns minutos; seu filho mais novo estava dormindo ao seu lado. Depois de se vestir, ela o acordou.
– Acorde, filho. – Samuel fez um barulho. – Acorde ou eu vou te dar um ataque de cosquinha.
– Não! – protestou o menino.
– Quem vocГЄ prefere: Maribel ou RocГo?
– Nenhuma.
– Você tem que escolher, mamãe tem que trabalhar.
– Não posso ficar com o mano?
– O mano não tá em casa, escolha – insistiu Mónica, enquanto se penteava.
– Eu fico sozinho.
– Não pode.
– Vou com você.
– Também não pode.
– Mas mГЈe, Г© que eu nГЈo gosto de Maribel e RocГo.
Trinta e dois minutos depois, MГіnica chegou Г casa de seu cliente. A casa era uma grande mansГЈo na ГЎrea nobre da cidade, cercada por ГЎrvores exuberantes.
Um homem mal-humorado, vestido com um terno completamente branco e com um lenço roxo no bolso do paletó, segurando um copo de plástico cheio de café, abriu a porta de trás da limusine que Mónica estava dirigindo.
– Você está ciente de que está dois minutos atrasada? Espero que os atrasos não se repitam, ou vou ter que te demitir. – o homem olhou para o banco do passageiro. – Quem é o menino? – Mónica ficou vermelha.
– Desculpe, ele é meu filho, eu não tinha onde deixar e… – se justificou Mónica.
– Sim, sim, me poupe, nГЈo tГґ interessado em desculpas e nГЈo gosto de pessoas que sempre tГЄm uma na ponta da lГngua, prefiro pessoas determinadas. Eu nГЈo me importo que vocГЄ trouxe seu filho, eu gosto de crianГ§as. Mas por que vocГЄ ainda nГЈo saiu?
– Desculpe, não sei onde o senhor trabalha. Poderia me dizer?
– Não te deram o endereço?
– Não.
O homem suspirou.
– Tá bom, dessa vez eu vou lhe indicando o caminho. E, por favor, não se desculpe de novo, e não me chame de senhor, eu não sou tão velho assim.
O homem parecia jovem, apesar de ter o cabelo completamente grisalho. MГіnica calculou que ele deveria ter cerca de quarenta anos.
A moradora de Elche saiu com a limusine seguindo as instruções de seu chefe. Estava nervosa, não queria estragar seu novo emprego no primeiro dia. O trajeto durou apenas dez minutos; se estivesse em uma estrada automática, levaria mais de cinquenta. Mónica começou a entender a utilização das estradas antigas para evitar engarrafamentos e chegar mais cedo aos lugares.
– Você foi uma grata surpresa. – o homem sorriu para Mónica pela primeira vez. – Quantos anos você tem? – perguntou ele a Samuel.
Samuel levantou a mão escondendo o polegar e mostrando um quatro. O homem se aproximou dele e acariciou sua cabeça.
– Vejo você à uma, não se atrase desta vez – disse ele, virando-se para Mónica, que balançou a cabeça.
O homem colocou óculos de sol bastante modernos e saiu da limusine, mas deu azar de derramar o que restava de seu café nas calças brancas.
– Merda! Porra!
Samuel e sua mãe riram, colocando a mão na frente da boca para esconder. O chefe de Mónica virou-se e deu um sorriso forçado.
MГіnica foi com o filho a um estacionamento abandonado que nГЈo ficava longe da empresa de seu chefe, lembrando as palavras do homem que telefonou para ela no dia anterior, que disse para ela nГЈo se afastar da empresa.
– Temos que esperar no carro até que ele termine?
– Sim, você quer brincar de alguma coisa?
Samuel balançou a cabeça em sinal de negação.
– Prefiro ler.
– Sabe, seu pai também gostava muito de ler.
– Mãe, quando eu for pro outro lado, eu vou ver ele?
– Não sei, meu amor, espero que sim – respondeu ela, de forma carinhosa.
Samuel pegou um dos dois livros que havia trazido e comeГ§ou a ler. MГіnica, enquanto isso, pesquisou sobre seu novo chefe na internet. O nome dele era Alexis, tinha quarenta anos, como tinha estimado, e, quando era mais novo, tinha sido capa de vГЎrias revistas por causa de escГўndalos. Pelo que ela conseguiu descobrir, ele se casou quatro vezes, todos casamentos curtos, exceto o atual, que jГЎ durava quatro anos, e do qual nasceram suas duas lindas filhas: Yolanda, de trГЄs anos, e Aura, de um ano e meio. A empresa onde ela o havia deixado, O Diamante Dourado, pertencia Г sua famГlia hГЎ trГЄs gerações e trabalhava com a fabricação e pesquisa de novos aparelhos tecnolГіgicos. AlГ©m disso, ele construiu centros de armazenamento de energia solar e reservatГіrios sobre o mar em ГЎreas muito chuvosas, para um projeto beneficente que permitiria custo zero de eletricidade e ГЎgua potГЎvel para as pessoas, um projeto anunciado anos atrГЎs, que MГіnica e outras pessoas necessitadas desejavam que acontecesse.
Procurando nas fotos de adolescente de Alexis, ela finalmente se lembrou. Ela nГЈo tinha reconhecido por causa de sua grande mudanГ§a fГsica. Quando ele era mais jovem, era gordinho, seu rosto era cheio de espinhas, e daria para dizer que ele era feio. Agora, apesar de nГЈo dar para dizer que ele era bonito, era muito atraente, graГ§as, em parte, Г sua aparГЄncia mais madura. Na juventude, ele teve vГЎrias namoradas que se aproximaram dele por dinheiro. MГіnica lembrou que uma dessas namoradas era justamente uma amiga dela de infГўncia, mas a histГіria nГЈo acabou muito bem. Sua atual esposa era uma ex-modelo sueca de lingerie, famosa por ter desfilado trГЄs vezes para o prestigiado desfile do estilista Гtalo-espanhol Fiordi Ramos e por ter feito participações especiais em filmes famosos.
Sem perceber, concentrada em descobrir novos detalhes de seu chefe, o relГіgio marcou quinze para a uma. MГіnica acelerou a limusine e seguiu para o local.
Alexis subiu sem dizer uma palavra, depois começou a ler alguma coisa em seu celular, que era muito grande. Mónica estava olhando para ele pelo espelho retrovisor. Ela gostaria de descobrir mais sobre o novo chefe, mas não se atreveu a falar com ele. Além disso, não deveria. Ao chegar na mansão, ele saiu sem se despedir e entrou em casa. Mónica achou ele antipático.
Assim que ela chegou em casa, apressou-se em procurar seu filho mais velho, mas Г“scar nГЈo tinha retornado. Logo depois de se certificar que o filho nГЈo tinha voltado durante o tempo em que ela estava trabalhando, a campainha da casa tocou. MГіnica correu para a porta pensando que deveria ser seu filho. Em vez disso, encontrou Ignacio com uma rosa vermelha um tanto pГЎlida na mГЈo esquerda e um olhar entre o de um ator exagerado que tentava seduzir e o de um assassino sГЎdico.
– Oi, linda – disse ele, enquanto ia baixando o olhar.
– O que você quer, Ignacio? – perguntou Mónica, colocando as mãos na cintura.
– Eu nГЈo quero chegar na complicada situação de ter que te despeja, entГЈo eu tenho pensado sobre isso. Eu sempre notei uma certa atração entre nГіs – MГіnica tossiu para nГЈo rir. —, mas, desde que Maribel me disse ontem que vocГЄ sente alguma coisa por mim, me pareceu uma boa ideia sairmos juntos. Se vocГЄ fosse da minha famГlia, nГЈo teria que me pagar o aluguel. Pense bem, seria uma estupidez se vocГЄ ficasse na rua por nГЈo querer sair comigo. No futuro, podemos atГ© casar e ter filhos, se vocГЄ quiser, embora eu nГЈo goste muito de crianГ§as.
– Acho que não entendi direito, você tá propondo que eu me prostitua em troca do aluguel?
– Não, você me entendeu mal. Eu só quero que o amor prevaleça. Somos duas pessoas apaixonadas, por que não ficarmos juntos?
MГіnica pensou que jГЎ tinha ouvido muita bobagem, entГЈo cortou qualquer possГvel proposta dizendo com dureza:
– Eu nunca na minha vida vou sentir nada parecido com amor por você, coloque isso na sua cabeça. Nunca mais me proponha uma coisa tão indecente como você acabou de fazer.
MГіnica virou-se e bateu a porta, ante o rosto atordoado de Ignacio, que ficou ali sem saber como reagir.
***
Eram nove da manhГЈ quando a porta da frente se abriu. MГіnica correu, perturbada. Г“scar entrou com cara de cansado.
– Aqui – disse Óscar à mãe, entregando-lhe um envelope.
MГіnica abriu, surpreendendo-se com a quantidade de dinheiro que havia dentro.
– De onde você tirou isso? E onde você esteve desde que saiu? – perguntou, exaltada.
– Calma, eu tô bem. Pague Ignacio —disse ele com uma voz calma.
– Não até você me dizer onde conseguiu todo esse dinheiro.
– O vovô e a vovó me deram, tem o suficiente pra um ano inteiro.
MГіnica ficou de boca aberta.
– Sabe, mãe, às vezes não ser orgulhoso não é tão ruim.
– Quero que você devolva pra eles agora mesmo – disse ela de forma autoritária.
– Nós precisamos, é isso ou a rua.
– Não mais, Óscar, eu tenho trabalho, fui contratada como motorista.
Agora era Г“scar quem estava surpreso.
– Quê?
– Você achou que era uma piada?
– Mas nas estradas antigas só tem loucos dirigindo, procurando uma desculpa para desafiar a morte.
– Não vai acontecer nada comigo, as estradas antigas tão quase desertas.
– É o quase que me preocupa.
– Sobre anteontem… – Mónica mudou de assunto.
– Não quero falar sobre isso.
Óscar começou a andar em direção às escadas.
– Óscar, seu pai não é como você pensa.
– Mãe, por favor, eu disse que não quero falar sobre isso.
– Mas precisamos falar sobre isso.
– Falar sobre o quê? Que você é uma mentirosa?
– Eu te decepcionei, não foi?
– Você não sabe o quanto.
Г“scar subiu para o andar de cima e se trancou no quarto. MГіnica, por sua vez, pegou o celular e ligou para os pais.
– Quem é? Não vejo nada – disse uma voz feminina do outro lado da linha.
– Não é uma chamada holográfica, é só de voz – uma segunda voz entrou na conversa.
– Mãe, pai, sou eu, Mónica.
– Querida, você precisa comprar um celular mais moderno pra que possamos ver você como se tivesse aqui.
– Vamos te dar um – disse seu pai.
– Vovô! Vovó! – disse Samuel, saindo da cozinha.
– Querida, ative a videochamada, quero ver meu neto.
– Mãe, não é necessário. Samuel, suba pro seu quarto – ordenou ela ao filho.
Samuel foi obediente e subiu correndo as escadas.
– Por que vocês deram dinheiro a Óscar? Eu não preciso do seu dinheiro.
– Eu acho que precisa, ele disse que iam despejar vocês.
– Pai, não seja intrometido, eu já consegui um emprego.
– Que bom, filha, que bom. De qualquer forma, fique com o dinheiro.
– Não tenho intenção de fazer isso.
– Esse seu orgulho vai acabar com você. Sabe quem eu vi ontem no cabeleireiro?
– Não, mãe.
– A mãe de Óscar.
– A mãe de Óscar sou eu.
– Filha, pare de se fazer de boba. Sabe o que ele me disse?
– Não quero brincar de adivinhar com você, mãe.
– Ela disse que quer ver o neto, e ela tem esse direito. Dezoito anos e só viu em fotos.
– Você mostrou pra ela fotos do meu filho? – perguntou ela, irritada.
– Ela é avó dele, você tem sorte que o sem-vergonha do Óscar não pediu a guarda compartilhada.
– Você não disse nada disso pro meu filho, né?
– Não dissemos nada pra ele, mas, se ele perguntar, nós vamos contar.
– Pai, é uma questão entre meu filho e eu.
– Errado, é uma questão entre seu filho e a avó dele.
ГЂ tarde, como todo Гєltimo domingo de cada mГЄs, MГіnica e seus filhos foram juntos ao cemitГ©rio para visitar o tГєmulo do pai de Samuel, Miguel. Embora o tempo tivesse passado, a dor da perda ainda continuava. Para MГіnica, Miguel tinha sido a pessoa perfeita para ela. PerdГЄ-lo tinha sido um golpe terrГvel. Se ela pГґde continuar com sua vida, era por causa de seus filhos. Para Г“scar, Miguel foi como encontrar o pai perdido, aquele que ele tanto desejava, e que agora tinha descoberto que poderia ter, se nГЈo fosse pelo egoГsmo de uma mГЈe que nГЈo lhe permitia vГЄ-lo. Mas agora que ele sabia parte da verdade, estava disposto a conhecГЄ-lo e a completar o enigma que cercava a adolescГЄncia de seus pais.
7.В Todos juntos
Keysi lia em um jornal digital uma notГcia com o tГtulo: O prestigiado laboratГіrio maiorquino O Farol da Luz encontra o antГgeno para o vГrus que matou centenas de pessoas na AustrГЎlia, orgulhosa de sua colega.
Ela estava sentada na entrada do laboratГіrio, com o som do mar calmo ao fundo. Depois de ler o artigo inteiro, ela se levantou e passou novamente pelos controles de seguranГ§a na entrada. Primeiro, era preciso justificar sua presenГ§a no laboratГіrio, depois a pessoa passava o cartГЈo de autorização pelo sistema. Se tudo estivesse em ordem, a primeira porta, toda de vidro, se abriria. EntГЈo, era necessГЎrio passar por um detector de matГ©ria, que detectava qualquer material, fosse ele de metal, plГЎstico, madeira ou qualquer outro tipo que a pessoa estivesse carregando. Finalmente, era preciso entrar em um compartimento quadrado de paredes transparentes que detectava resГduos de vГrus.
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